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updated 6:28 PM UTC, Nov 11, 2024
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ESTEJA ATENTO: a Plural&Singular faz 10 anos e vai lançar a 28.ª edição da revista digital semestral que dá voz às questões da deficiência e inclusão

Lia Ferreira: “A mudança só acontece quando se instala a consciência social global sobre as necessidades a suprir”.

Lia Ferreira é arquiteta especialista em acessibilidade e inclusão e coordenadora da Estrutura de Missão para a Promoção das Acessibilidades, o órgão responsável por dar início aos trabalhos que vão conduzir à elaboração do Plano Nacional de Promoção da Acessibilidade.

01 – Quem é a Lia: como se vê, como as pessoas o veem?
Lia Ferreira (LF) - Começo por admitir que gosto, muito pouco, de falar sobre mim. O motivo é muito fácil de perceber. Estou tão focada no que estou a fazer, no que acredito ser verdadeiramente importante e urgente, que me sinto mais realizada a falar sobre aquilo que defendo do que de mim própria. Na realidade, o que sou confunde-se com o que defendo. Mas fazendo o exercício que me pedem, sou licenciada em Arquitetura, doutoranda e investigadora na minha área de formação. Sintetizando o meu percurso ao essencial, comecei a colaborar num atelier de Arquitetura, ainda durante a licenciatura. Seguiu-se o trabalho num Gabinete de Planeamento e Ordenamento do Território, onde me dedicava à elaboração de Planos de Acessibilidade e Mobilidade para Todos. Anos depois, integrei a Provedoria dos Cidadãos com Deficiência da Câmara Municipal do Porto. Em 2019, integrei o Gabinete da Secretária de Estado das Pessoas com Deficiência, durante os XXII e XIII Governos Constitucionais.
Paralelamente à atividade profissional oficial, sempre me envolvi em grupos de trabalho técnico e de investigação científica, movimentos cívicos e, há mais de 15 anos, que desempenho funções como autarca.
Mais recentemente, em fevereiro do ano presente, assumi a Coordenação da Estrutura de Missão para a Coordenação das Acessibilidades.
Nasci sem qualquer tipo de incapacidade. Sempre fui muito irrequieta, curiosa, criativa, sonhadora, inconformada e persistente. Sou demasiado perfeccionista e exigente, comigo própria. Faço questão de estar em constante atividade, com projetos simultâneos, por sentir que me dá uma perspetiva mais abrangente sobre as diferentes realidades. Gosto de sentir o fervilhar das dinâmicas, própria de projetos novos, em desenvolvimento e em concretização.
Sou pessoa de afetos e de entrega genuína, extremamente protetora e apreciadora do tempo em família e amigos(as).
Nunca aceitei injustiças, têm efeito mola dentro de mim, não consigo ignorar e permanecer impávida. Sou muito fiel e defensora dos princípios e valores que me orientam.
Creio que estas características são as fundações da minha personalidade.
Aos 4 anos fui atropelada, o acidente foi muito grave. O diagnóstico inicial era de que não sobreviveria, no hospital prepararam a minha família para o cenário que afirmaram ser inevitável. As previsões clínicas erraram, mas as sequelas são irreversíveis, passei à condição de pessoa com mobilidade condicionada (paraplégica). Foram 18 meses de internamento, grande parte dos quais acamada. Quando, finalmente, me colocaram numa cadeira de rodas e me permitiram sair da enfermaria, fiquei muito feliz. Lembro-me, vivamente, de gritar alegremente “Já posso ir brincar com os outros meninos no jardim”! Rapidamente, fui esmagada pela minha nova realidade, embora na altura sem consciência da sua dimensão. Subitamente, tudo mudara, passaram a existir muitos obstáculos condicionadores da minha liberdade, o meu próprio corpo estava diferente. Tinha um longo processo de aprendizagem e redescoberta pela frente.
Recordo-me de ter decidido, muito cedo, que um dia trabalharia para construir soluções. Esta decisão tem impactado toda a minha vida. A opção de me licenciar em Arquitetura, foi uma decisão consciente e muito ponderada. Na origem esteve o desejo insaciável de me dedicar à inclusão através das acessibilidades, investigar os temas, dissecar toda informação produzida, especificidade de necessidades, hipóteses e metodologias, especializar-me para poder trazer um contributo responsável e útil. Desde essa decisão, tendo dedicado tudo o que sou, pessoal, formativa e profissionalmente, ao tema. Nunca parei de investigar, dentro de mim existe uma sede enorme de conhecimento e necessidade de oferecer um contributo válido, robusto e assertivo.
Como me vejo? Creio que me vejo como uma ferramenta, completamente dedicada aos temas. Sou, indiscutivelmente, a extensão do que defendo e que, em mim, funciona como sopro de vida, fonte de energia.
Como me veem? Depende. Quem me conhece e me é próximo, vê-me como alguém muito persistente e determinada, mas também, afetuosa e bem-disposta, sempre pronta para um bom momento de convívio e partilha. Quem não me conhece, creio que vê alguém muito convicto do que defende, talvez excessivamente, e completamente dedicada ao trabalho.

02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?
LF - O que sinto, essencialmente, é que foram 10 anos de muitas mudanças, muito amadurecimento e aprendizagem. Nada fáceis, em nenhum aspeto, incluindo em termos de saúde, mas extremamente enriquecedores. Acredito que as adversidades têm este condão de nos colocar à prova e obrigar a crescer. De certa forma, trazem-nos resistência, colocam tudo em perspetiva e reforçam as nossas características de resiliência.
Na última década, adquiri muita experiência profissional e política. Internamente, sinto ter sido abalroada por um tsunami que remexeu todos os cantos e recantos, obrigou-me a crescer, reconstruir-me, ter mais responsabilidade e consciência sobre as implicações de cada decisão e intervenção que faço. Percebi o valor e peso das palavras, principalmente pelas expectativas que geram e as dinâmicas que provocam, seja do ponto de vista cívico, como técnico ou político. Percebi, também, que para conseguir provocar sinergias transformadores eficazes e permanentes, tenho que ancorar as propostas em conhecimento consistente e na aproximação à realidade no terreno, ao contexto social e económico.
Atualmente, estou muito melhor preparada e mais segura. Sou melhor profissional, mais experiente e completa, melhor analista e, sem dúvida, melhor pessoa do que era há 10 anos. O tempo e os desafios transformam-nos. Compete-nos decidir, a cada instante, o tipo de transformação e caminho que queremos seguir. Procuro estar, sempre, atenta às consequências que precederão às decisões que tomo, para ter certeza de que não me desvio da decisão que tomei na infância: “trabalhar para construir soluções”, ser parte da solução e nunca do problema.

03 - Quais foram os momentos mais marcantes?
LF - Eleger os momentos mais marcantes dos últimos 10 anos não é tarefa fácil. Mas tendo mesmo que o fazer, creio que foram a minha passagem e saída da Provedoria dos Cidadãos com Deficiência, da Câmara Municipal do Porto, assim como a minha passagem pelo Gabinete da Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência durante os XXII e XIII Governos Constitucionais.
Hoje, consigo perceber as diferentes perspetivas das áreas de intervenção e respetivos constrangimentos associados. Conheço as perspetivas cívica, técnica, económica e política. Dessas perspetivas tenho a experiência da fricção natural, e nada agradável, entre o que idealizamos, a teoria e a execução.
Sei o que significa precisar de ver algo acontecer e esperar… Cada dia desse período de espera tem o sabor de anos de vida perdida.
Sei o que significa ser técnico e querer fazer acontecer, mas não saber qual o caminho a seguir, nem tão pouco ter os meios disponíveis e recursos para concretizar.
Conheço a responsabilidade e dificuldade da definição de políticas públicas transformadoras, mas também conheço a complexidade do processo de concretização.
A experiência adquirida trouxe-me a capacidade pensar de forma mais estruturada e estruturadora. Este é um aspeto que valorizo muito, aprendi que para abrir caminhos inexistentes é essencial analisar o terreno para não construir sobre pântanos, perspetivar e zelar pela boa conservação e futuro da intervenção que pretendemos realizar.

04 - Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?
LF - Centrando a minha avaliação em território nacional, avalio positivamente e acima da média. Não creio, no entanto, que tenhamos alcançado todos os objetivos, muito menos defendo que estejamos em condições de abrandar o ritmo. Pelo contrário!
Acho que, nas últimas décadas, fizemos um percurso tão positivo que temos o dever e responsabilidade social de ser mais exigentes do que poderíamos ser em 2013.
Dizem que “Roma não se construiu num dia” e eu concordo, mas relembro que jamais teria sido o império que foi se, os seus governantes, se tivessem contentado com a construção de apenas parte da cidade.
A pandemia que passamos foi avassaladora para todas as áreas sociais. Porém, trouxe algo de positivo, deixou a descoberto e reforçou a necessidade de intervir sobre áreas que estão carentes de respostas e reformas. Refiro-me à pandemia como algo positivo, do ponto de vista dos holofotes que acendeu sobre as necessidades e, pelo reforço que trouxe à importância de imprimir um ritmo mais intenso na resolução dos problemas, nomeadamente a melhoria das condições de acessibilidade. A mudança só acontece quando se instala a consciência social global sobre as necessidades a suprir.

05 - Em que áreas foi mais positiva a evolução?
LF - Das conquistas alcançadas, destaco a criação das bases do Modelo de Apoio à Vida Independente (na perspetiva da existência de assistentes pessoais), a Prestação Social para a Inclusão, a Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência 2021-2025, a Estratégia Nacional de Promoção da Acessibilidade e Inclusão dos Museus, Monumentos e Palácios 2021-2025 (EPAI) na dependência da Direção-Geral do Património Cultural e das quatro Direções Regionais de Cultura, assim como a abertura das primeiras linhas de financiamento para intervenções de melhoria das condições de acessibilidades – o “Programa +Acesso”, o “Programa All for All”, o “Programa de Acessibilidades aos Serviços Públicos e na Via Pública ” e o “Programa Acessibilidade 360º”.
Na última década, Portugal disponibilizou, pela primeira vez, financiamento para operacionalização de planos de acessibilidade. Isto é algo que acrescenta urgência ao planeamento e pensamento, sobre o que são acessibilidades e o seu posicionamento nos planeamento e gestão do território.
Poderão estranhar, o facto de ter elegido documentos estratégicos (Estratégias de ação) como pontos marcantes do processo evolutivo em curso. O mais natural seria limitar-me a referenciar medidas concretizadas que vieram alterar a realidade sentida. No entanto, talvez pela minha área de formação, acredito na importância do planeamento sistémico e de documentos estratégicos orientadores e impulsionadores de reformas profundas. A eficácia, profundidade e abrangência das medidas implementadas, pode ser comprometida se não estiver articulada com outras áreas de intervenção. Exemplificando: de pouco nos servirá adquiri uma carruagem de comboio de alta velocidade se não existirem infraestruturas para a sua circulação (linhas adequadas e estações de embarque/desembarque). Este princípio aplica-se a todas as áreas de atuação, em especial aquelas que têm uma interferência muito fina e direta na vida das pessoas, nomeadamente pessoas com deficiência. Considero, fundamental, planear intervenções e medidas, partindo de documentos orientadores estruturantes, nos quais se encontrem definidos: objetivos, metas a alcançar e indicadores de execução.


06 - O que ficou por fazer?
LF - Tanto… diria que ainda não foi, devidamente, apreendido e compreendido que falar de acessibilidades e, em especial de inclusão das pessoas com deficiência é, em primeira instância, falar em metas de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Falar e trabalhar estes temas é falar de futuro, coesão, sustentabilidade e qualidade. Estou convencida de que, só seremos capazes de dar o salto evolutivo e qualitativo necessários, quando estes temas passarem a ser tratados como fundações da democracia e do desenvolvimento sustentável.
Sintetizando, temos muito trabalho a realizar e precisamos de acelerar o processo.

07 - A comparação inevitável: como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?
LF - A resposta a esta questão é tudo menos linear, depende inteiramente de que área de intervenção estamos a falar. É muito variável, se falamos de acessibilidade nas TIC, estamos na linha da frente em relação à grande maioria dos países. Se falarmos de acessibilidade nos diferentes modos de transportes, não estamos no topo, mas também não estamos mal posicionados (embora não estejamos no nível que desejaríamos). Do ponto de vista do enquadramento legal estamos bem posicionados. No que diz respeito a fiscalização, diria que temos muito trabalho a fazer para nos equipararmos com países vizinhos, etc.
Como referi, não é possível fazer uma equiparação genérica, porque não temos graus de evolução idênticos, nas diferentes áreas de atuação.

08 - Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?
LF - Quero acreditar que serão de novas e importantes conquistas. Não quero, sequer, imaginar que sejamos capazes de inverter a curvatura dos avanços nestes temas. Retroceder ou abrandar o ritmo seria um erro terrível para Portugal.
As pessoas com deficiência estão mais despertas e conscientes dos seus direitos e isso é muito positivo, funciona como força motriz, eleva os padrões de exigência. Considero que a força dos movimentos sociais é determinante para a evolução de qualquer país.

09 - Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?
LF - Paradoxalmente, de muito trabalho. Digo paradoxalmente, porque embora sinta necessidade de ter mais tempo para mim própria, para a minha vida pessoal e familiar, dentro de mim há uma urgência desmesurada de ver acontecer, de participar e fazer acontecer, e de sentir que estou a dar um contributo responsável, ativo e eficiente, para a evolução e efetivação de direitos.
Desejo manter a capacidade de sonhar, convictamente, acordada e desassossegada, mantendo-me fiel aos princípios que me têm guiado e não desiludir quem confia na minha capacidade de concretizar. Acima de tudo, desejo ter sempre a consciência de que aquilo que defendo é muito mais importante do que eu. Por isso, espero ser uma gotinha do oceano de pessoas que trabalham a temática construtivamente.

10 - Que mensagem deixa à Plural&Singular (projeto editorial dedicado à deficiência e inclusão) pelos 10 anos de existência?
LF - Gostaria de deixar uma mensagem de reforço e reconhecimento.
Reforço da importância e pertinência do trabalho que fazem e da desinquietação que nos trazem. Sou apreciadora da vossa desinquietação que acrescenta camadas e perspetivas.
Reconhecimento pela qualidade e atualidade do trabalho.
Muito obrigada por acreditarem e estarem desse lado, resilientes e persistentes, sem conformismo e com toda a energia possível.

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