André Capelo Vasconcelos: “Os cidadãos surdos oralizados e utilizadores de tecnologia para ouvir (…) são constantemente desafiados e equiparados a normo-ouvintes, quando não são”.
- Escrito por Sofia Pires
- Publicado em Portugal
Nasceu com surdez profunda bilateral mas utiliza implantes cocleares para ouvir, uns aparelhos mágicos que o ajudaram a concretizar o sonho de ser médico, profissão que exerce na Unidade de Cuidados Saúde Personalizados da Pampilhosa da Serra. Tem sido ativo na missão de defender as pessoas que, como ele, são surdos oralizados e, por isso, mais invisíveis na hora de lutar por direitos. Chama-se André Capelo Vasconcelos, é casado e tem duas filhas e um filho.
01 – Quem é André Capelo Vasconcelos: como se vê, como as pessoas o veem?
André Capelo Vasconcelos (ACV) - Chamo-me André Capelo Vasconcelos, tenho 35 anos de idade, nasci com surdez profunda bilateral, sou oralizado e utilizador de tecnologia para Ouvir (Bi - Implante Coclear). Atualmente sou médico de família na Unidade de Cuidados Saúde Personalizados (UCSP) da Pampilhosa da Serra, um local no interior do nosso Portugal, com uma riqueza cultural, paisagística inigualáveis, para além da população residente ser carinhosa, acolhedora e extremamente trabalhadora. Faço parte de uma família, ao lado da minha mulher que já a conheço há 17 anos, dos meus três filhos, a "Manu, a Lety e o Gaby", com o desafio de os tornar pessoas nesta sociedade.
02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?
ACV - De uma forma breve, os momentos mais marcantes foram o ingresso no Internato Médico de Medicina Geral e Familiar (MGF) na UCSP Monchique (Algarve), que terminei em março de 2018 tendo em setembro ingressado como especialista em MGF na UCSP Pampilhosa da Serra. Em abril de 2014 realizei o 2.º Implante Coclear à direita, obtendo o tão desejado, som tridimensional. Em 2015, fui convidado pela Widex para participar num projeto de testemunho filmado, encontrando-se o mesmo no YouTube e em 2016, fui um dos responsáveis pela criação do Movimento Unidos pela Audição, assim como organizei juntamente com a equipa de administradores, um evento para pessoas implantadas cocleares em 25 de fevereiro de 2017, celebrando-se o Dia Internacional do Implante Coclear. Ainda em 2016, fui ao Programa da Tarde é Sua, entrevistado pela Fátima Lopes, tendo tido a oportunidade de dar o meu testemunho. Durante a pandemia COVID, tive que realizar uma nova reabilitação auditiva, tendo feito afincadamente terapia da fala, fiz o upgrade dos meus processadores de som para um modelo mais avançado, pago do meu próprio bolso, tudo no sentido de driblar integralmente as máscaras que hoje fazem parte do dia-a-dia profissional dos cuidados de saúde.
03 - Quais foram os momentos mais marcantes?
ACV - Naturalmente, em dezembro 2011, na busca de "mais saúde auditiva", e não querer sentir-me minimamente incapaz a exercer o meu sonho de menino - "Ser médico", realizei o meu primeiro implante coclear à esquerda. Perante a tão desejada entrada no "Reino dos Sons", senti a crescer em mim a necessidade de fazer mais pela saúde auditiva nacional, o espírito ativista começou, a luta pelos direitos das pessoas que desejam poder ouvir. Para além de constantemente dinamizar as redes sociais como "Bionic Family Doctor" (médico de família biónico), fiz parte da APAIC (Associação Portuguesa de Apoio aos Implantes Cocleares) como vice-presidente no triénio de 2014-2016, e coorganizei o Movimento Unidos Pela Audição, tendo sido um dos administradores do grupo, de 2016 a 2019. O meu trabalho enquanto ativista dos direitos das pessoas que desejam ouvir continuará sempre e jamais estará concluído.
Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?
ACV - No que diz respeito à saúde auditiva e à deficiência auditiva em Portugal deu-se o acesso à comparticipação integral das tecnologias para ouvir, a criação dos centros de referência em Implante Coclear (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental e a publicação de normas de orientação clínica pela Direção Geral da Saúde "Rastreio e Tratamento da Surdez com Implantes Cocleares em Idade Pediátrica". Houve avanços consideráveis na inclusão dos discentes com perda auditiva, surdez nos estabelecimentos de ensino regular, promovendo a inclusão de crianças e dos adolescentes com necessidades de saúde especiais e conduzindo a uma educação inclusiva. Também é importante o apoio do Estado português através da Prestação Social de Inclusão e a legislação atualizada referente à acessibilidade e inclusão das pessoas portadoras de deficiência em concursos para profissionais de saúde, através da alínea em concursos públicos: quotas para deficiência (para pessoas com incapacidade superior ou igual 60%.
05 - Em que áreas foi mais positiva a evolução?
ACV - Houve uma melhoria clara no acesso aos cuidados de saúde e das necessidades de saúde especiais das pessoas com deficiência.
06 - O que ficou por fazer?
ACV - O acesso, a dignidade profissional e adaptação das condições de trabalho aos cidadãos com deficiência ainda não é uma realidade. Na deficiência auditiva, a "surdez é invisível", ou seja até aos 18 anos de idade poderemos estar "protegidos", numa redoma da "educação inclusiva", contudo, quando somos lançados ao mercado do trabalho, impera a "lei da selva e do salve-se quem puder". Os cidadãos surdos oralizados e utilizadores de tecnologia para ouvir, como não aparentam qualquer deficiência visível , e por norma, não utilizam a Língua Gestual Portuguesa, uma vez que escolheram o caminho da audição e da comunicação verbal falada, são constantemente desafiados e equiparados a normo-ouvintes, quando não são. O esforço patente de alguém que usa tecnologia para ouvir será sempre superior, logo é necessário equacionar condições de trabalho específicas à deficiência em causa. Relativamente à reforma antecipada, apenas foi atribuído para pessoas com incapacidade maior ou igual que 80%, e os cidadãos com incapacidades de 60-79%? Não esquecendo que há uma enorme desigualdade e disparidade na atribuição da incapacidade às pessoas com perda auditiva/surdez, o atestado médico de incapacidade multiusos, porque por vezes, é avaliada a incapacidade auditiva com tecnologia para ouvir. Uma vez que, a Surdez não tem cura, seria de extrema importância uniformizar os procedimentos na obtenção do Atestado Médico de Incapacidade Multiusos, em que o cidadão com perda auditiva incapacitante seria avaliado sem a tecnologia para ouvir. A comparticipação e a rapidez na atribuição de produtos de apoio (SAPA), como as próteses auditivas, upgrades de processadores de som (parte externa dos implantes auditivos) ou sistemas de apoio à escuta, é morosa e não está de acordo com o número de pessoas que desejam e necessitam. É necessária uma maior intervenção do Instituto Nacional de Estatística, em classificar categoricamente os tipos de deficiência, assim como as suas características socio-geodemográficas.
07 - A comparação inevitável: como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?
ACV - Em termos de acessibilidade e equidade na área da deficiência, Portugal infelizmente mantém-se aquém da realidade europeia, apesar de haver uma maior sensibilização, a ação a seguir: capacitação, ainda precisa de longo caminho a percorrer. Porém lá está, é preciso um maior empoderamento da população com deficiência, em sair da sombra, quebrando o silêncio e os estigmas provocados e perpetuados por uma sociedade normativa, algo que não existe... Já na saúde auditiva, os países fronteiros possuem um Programa Nacional de Promoção da Saúde Auditiva, incentivado e apoiado pela Organização Mundial de Saúde, esse planeamento estratégico em saúde, faz toda a diferença no diagnóstico da perda auditiva/surdez, intervenção precoce e reabilitação auditiva nas diferentes etapas de vida do cidadão. O depender de "casas de aparelhos auditivos" para se poder ouvir, numa visão marketinizada da saúde auditiva, não deveria ser uma realidade em pleno século da inclusão.
08 - Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?
ACV - Tudo dependerá do pensamento ativo e da atitude proactiva da sociedade, e também do sentido de proteção daqueles que são portadores de deficiência, importa que as vozes dos cidadãos com deficiência ecoem e brandem bem alto, em uníssono pela defesa dos seus direitos. Talvez dessa forma, as entidades governamentais se sensibilizem mais para estas problemáticas, e os próximos 10 anos poderão ser mais promissores e inclusivos. Espero que o Programa Nacional de Promoção da Saúde Auditiva seja uma realidade no nosso país brevemente, uma vez que as medidas primordiais são a essência no alinhamento de políticas, estratégias, atividades e maior impacto na saúde.
09 - Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?
ACV - Nos próximos 10 anos desejaria trabalhar a tempo inteiro na promoção da saúde auditiva.
10 - Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?
ACV -Antes de mais, devo agradecer à Plural&Singular a oportunidade de fazer parte deste marco histórico na vossa existência. Apenas posso deixar o meu agradecimento por toda esta equipa e sobretudo iniciativa em espelhar as realidades das pessoas com deficiência, conduzindo a uma maior conscientização das reais dificuldades sentidas e necessidades a serem satisfeitas nas diferentes esferas da vida. Gratidão e bem-hajam! Porque é um prazer poder Ouvir
Contactos:
André Capelo Vasconcelos
Médico de Família
UCSP Pampilhosa da Serra, ACeS PIN, ARS Centro
Ativista pelos direitos das pessoas com perda auditiva/surdez que desejam poder OUVIR
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