Tiago Fortuna: “Não só encarámos, como começámos a combater o capacitismo e o assistencialismo crónico do nosso país”
- Escrito por Sofia Pires
- Publicado em Portugal
Tem 29 anos, estudou Ciências da Comunicação, foi assessor de imprensa na LiveCom, fez parte da equipa do Talkfest e fundou a Associação Portuguesa de Festivais de Música. Respira cultura e, por isso, em 2022 criou a Access Lab para garantir a inclusão cultural das pessoas com deficiência e Surdas. É através de uma metodologia inovadora, 360º, que cobre todas as áreas com necessidade de intervenção: percursos, bilheteira, comunicação, programação e mediação de público. Chama-se Tiago Fortuna e é o entrevistado de fevereiro de 2023 da Plural&Singular para celebrar os 10 anos desta revista digital.
01 – Quem é Tiago Fortuna: como se vê, como as pessoas o veem?
Tiago Fortuna (TF) - Tenho 29 anos, uma deficiência física e sou apaixonado pela cultura. Licenciei-me em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e, mais tarde, fiz uma pós-graduação em Comunicação de Cultura e Indústrias Criativas na mesma instituição. Fui assessor de imprensa durante cinco anos na LiveCom, trabalhando com diversos artistas, salas de espetáculos e festivais de música. Em 2020, com o impacto da pandemia, saí da agência e dediquei-me a estudar acessibilidade num programa de mentoria da associação Acesso Cultura. Em 2021 quis criar soluções práticas, que contemplassem a realidade do mercado português através da economia social e isso acabou por levar-me a co-fundar a Access Lab, a startup em que trabalho e tem como missão garantir o acesso de pessoas com deficiência e Surdas ao entretenimento.
02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?
TF - Aconteceu muita coisa. Acabei a minha licenciatura, tive o meu primeiro contrato, estudei novamente e acabei por co-fundar uma empresa. Foram 10 anos em que descobri muito sobre mim. Aprendi muito sobre a deficiência, percebi o quão plural é e como uma experiência pessoal não reflete a coletiva. Aprendi nomenclaturas, conheci pessoas novas, fiz amigos e cresci com tudo isto. Foram 10 anos de trabalho intenso e descoberta diária. 10 anos em que vi dezenas, ou talvez centenas, de espetáculos. Foi também quando viajei para ver concertos fora de Portugal pela primeira vez, experienciei a inclusão plena, dando-me motivação para procurar criá-la no nosso país.
03 - Quais foram os momentos mais marcantes?
TF - Os melhores concertos que vi nestes 10 anos: Beyoncé, Madonna, Grace Jones, Patti Smith. Tudo o que aprendi sobre a sociedade, a cultura e a humanidade através de concertos, da música, da literatura e do cinema. Depois disso, ou em simultâneo, tudo o que partilhei com os meus amigos e família. Foi muito marcante fundar a Access Lab, ter uma equipa comigo. Tudo isto envolve uma grande racionalidade, que me obriga a temperar emoções e a procurar tomar decisões que beneficiem um coletivo. É um projeto que me tem trazido muito crescimento e aceitação pessoal. Tive de assumir com maior responsabilidade a pessoa que sou - assumir erros e celebrar vitórias.
04 - Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência? (o seu ponto de vista, análise do que aconteceu)
TF - Acho que a maior conquista foi a representatividade. O Modelo de Apoio à Vida Independente e a Prestação Social para a Inclusão. Acredito que são duas medidas que agitaram a comunidade e isso aconteceu pela mão da representatividade. Despertaram-se vontades, inquietações, revoltas. Foram 10 anos em que, para mim, se veio a conquistar mais do espaço público. Temos cada vez mais pessoas com deficiência a ocupar o seu lugar de fala. Parece-me, também, que não só encarámos como começámos a combater o capacitismo e o assistencialismo crónico do nosso país. Gosto de olhar hoje para a sociedade e encontrar referências de pessoas com deficiência nos mais diversos quadrantes (político, social, cultural, laboral).
05 - Em que áreas foi mais positiva a evolução?
TF - Acho que tivemos evoluções em todos os quadrantes mas, a escolher uma, diria que foi a vida independente. E não creio que seja uma plenitude de independência (até porque a vida, no geral, e naturalmente, é uma codependência) mas os seus princípios enraizaram-se na comunidade e acredito que, a partir de agora, só continuaremos a evoluir.
06 - O que ficou por fazer?
TF - Está sempre tudo por fazer, por mais paradoxal que seja dizê-lo após as últimas respostas. Continuamos a ter obstáculos no acesso à cultura, emprego, educação. Enquanto isso acontecer, continuarei com esta sensação de que tudo está por fazer.
07 - A comparação inevitável: como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?
TF - Portugal tem uma legislação muito completa mas falta-nos fiscalizar e punir quem não a cumpre. No sector do entretenimento, em que trabalho, faltam cumprir vários desígnios para o respeito da dignidade humana. Faltam-nos políticas de bilheteira transversalmente inclusivas, recursos de programação, como Língua Gestual ou Audiodescrição, e falta-nos representatividade nas equipas. Falta-nos valorização da diversidade humana. Acho que nisso estamos ainda atrás de vários territórios europeus, e não somos o único país europeu com esse tipo de défice, mas acredito que devemos estar ao lado dos melhores e é com eles que devemos procurar ombrear-nos.
08 - Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?
TF - De conquista. Acredito que a representatividade vai ganhar mais do espaço que é seu por direito. Acredito que as empresas e instituições vão querer cada vez mais abraçar a diversidade humana. E acredito também que vamos crescer enquanto comunidade nos direitos conquistados, seja na vida independente, na cultura ou na educação.
09 - Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?
TF - De conquista e prazer. Quero ver concretizar-se tudo o que acabei de citar para a comunidade e gostava de dar o meu contributo para tal. Desejo que a Access Lab possa ser um instrumento de mobilização da economia social em prol da comunidade, não esquecendo nunca a importância do advocacy e da pluralidade. É para isso que trabalhamos diariamente. E de prazer, felicidade e conquistas. Que piada tem a vida sem estes elementos? Quero ver ainda mais concertos, conhecer mais pessoas e lugares.
10 - Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?
TF - Obrigado pelo trabalho incansável na representação da deficiência. Continuem a desbravar caminho e a abordar novos temas, novas pessoas, novos rumos.
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