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updated 11:43 AM UTC, Feb 23, 2024
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ESTEJA ATENTO: a Plural&Singular faz 10 anos e vai lançar a 28.ª edição da revista digital semestral que dá voz às questões da deficiência e inclusão

Alice Inácio: "Existe uma discriminação camuflada ao não saberem distinguir um surdo oralista de um surdo gestualista"

Estudou Design de Comunicação na Escola Superior de Tecnologias e Artes de Lisboa e atualmente trabalha como designer e ilustradora. É membro consultivo do Fórum Europeu da Deficiência, dirigente da Confederação Nacional de Organizações de Pessoas com Deficiência e membro fundadora da Associação OUVIR. Alice Inácio é ativista dos direitos das pessoas com deficiência e foi uma das responsáveis por lutar pela comparticipação estatal da colocação dos dois implantes cocleares.

 

01 – Quem é Alice Inácio: como se vê, como as pessoas a veem?

Alice Inácio (AI) - Alice Inácio, Designer. Aqui tão perto e distante posso ouvir, observar os mundos que me rodeiam e que fazem sustentar toda esta vastidão nos precisos detalhes deste espaço-tempo e é para mim uma dimensão sensorial ainda por explicar. O meu mundo está repleto de interações humanas e artísticas a todo o instante, estou tão viva como o sangue que corre no meu corpo. Esta gigante estrutura sustenta o real silêncio que apenas se torna aparente através do meu sotaque ligeiramente carregado que camufla totalmente a minha surdez a ouvir com dois implantes cocleares e com ela as vivências, as dores que passei, as emoções blindadas, as experiências enriquecedoras, os objetivos atingidos e os que estão por realizar a longo prazo. Há ainda o tanto por fazer e pavimentar esta estrada.

 

02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?

AI - É impossível resumir estes desafiantes 10 anos em poucas frases. Foi sem dúvida uma década e tanto porque permitiu-me crescer, consolidar e objetivos concretizados que outrora neste Portugal seriam impossíveis apesar de todas as provações. A palavra certa, a Persistência.

 

03 - Quais foram os momentos mais marcantes?

AI - O lançamento do livro infantil “Jonas e os Ouvidos Mágicos!” patrocinado pela Widex Centro Auditivos teve como finalidade desmistificar a surdez e os implantes cocleares a nível nacional, houve apresentações nas escolas primárias e básicas assim como as secundárias. Tudo isso foi fundamental para a criação de pontes na educação junto de crianças, jovens e docentes. Assim como nas Feiras de Livros. Foram experiências verdadeiramente ricas, de partilha, de interações na alegria em cada rosto ao levar para casa e escola e falar sobre crianças que tem esses “ouvidos mágicos”.
Outro momento igualmente marcante, na verdade diria, que foi o mais entusiasmante caminho até então agora desbravado neste imenso universo da surdez. Foi difícil e desgastante. Encriptado de artimanhas de um intenso jogo político para que o Implante Coclear Bilateral passasse a ser acessível no Serviço Nacional de Saúde (SNS) a todos os cidadãos adultos com deficiência auditiva severa a profunda. Tudo isso só foi possível com o envolvimento de dezenas de pessoas: eu, André Capelo Vasconcelos, familiares assim como amigos chegados, reportagens do Porto Canal, organizações de pessoas com deficiência - Associação OUVIR (Ricardo Miranda), CNOD, APD) - grupos parlamentares, profissionais de saúde especialistas em Otorrinolaringologia e respetivas equipas multidisciplinares como audiologistas e terapeutas de fala. Foram determinantes para vigorar o lançamento da norma clínica de implantação coclear bilateral em adultos pelo SNS, desde que o utente tenha indicação clínica para realizar este procedimento. 2018 foi o ano em que fiz a segunda cirurgia no CHUC – Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra e tornei-me implantada coclear bilateral depois de 11 anos incansáveis. E o melhor, é o facto de todos os cidadãos terem agora esta oportunidade de ouvirem em simultâneo por direito próprio e terem assim melhor qualidade de vida. Ter dois implantes cocleares elevou todas as minhas experiências ao próximo nível. Ser capaz de ouvir em ambos os ouvidos é o paraíso quadridimensional do máximo expoente dos sons para quem tem surdez profunda. Tenho agora uma maior consciência de tudo o que me rodeia e consigo comunicar facilmente. Disponho de menos informação visual para comunicar, centro o foco nos meus ouvidos biónicos para a fala e tenho muito mais energia para alargar outras tarefas que dantes me eram limitantes. Além de obter total segurança, a minha autoconfiança continua a crescer avassaladoramente a ponto de continuar a fazer o que é preciso nesta demanda para as melhorias de condições a pessoas com deficiência auditiva e que usam tecnologias para ouvir. Assistir à minha própria transformação diária é um deleite sem fim. E só por isso, estou muito feliz com o que já atingi atualmente sem esquecer as bases iniciais que seguram toda esta envolvência graças a uma intensa reabilitação auditiva bem estruturada e organizada, delineada pela minha terapeuta de fala, Leonor Fontes.

04- Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?

AI - Há uma maior independência e vontade, assim como interesse em viver as suas vidas e sentirem serem úteis à sociedade através da participação estudantil, afetiva, social, cultural e profissional e isso acaba por ajudar a romper os mitos existentes.

 

05 - Em que áreas foi mais positiva a evolução?

AI - Muita coisa melhorou, porém ainda é necessário explicar de modo consistente como deverão abordar as pessoas com deficiência auditiva de forma correta, existe uma discriminação camuflada ao não saberem distinguir um surdo oralista de um surdo gestualista. As necessidades de ambos são distintas, assim como as tecnologias existentes que podem servir para determinado grupo e não outro. Neste aspeto, ainda não se viu grandes evoluções nos setores públicos e educacionais no que diz respeito à implementação do sistema de aro magnético e legendagem.

 

06 - O que ficou por fazer?

AI - Ser implantada coclear bilateral transcendeu-me a várias etapas de maturidade auditiva, experiências ímpares e o percurso demonstra isso mesmo em lugares por onde vou e passo. Isto só demonstra o quanto a diversidade e a participação inclusiva se tornam cada vez mais importante e necessárias para quebrar as crenças limitativas do preconceito, as barreiras existentes a nível comunicacional assim como a ausência de acessibilidade em tecnologias assistivas para pessoas com deficiência auditiva que tem como língua materna o português falado e escrito, bem como dotar de formação a profissionais de cultura e camarários para uma participação efetiva e social na sociedade, entre tantos outros por ainda melhorar.

Contudo, vejo uma forte resistência da parte do governo português, uma imensa incapacidade e inexperiência assim como imaturidade plena em ter uma visão mais conhecedora e concertada em distinguir as necessidades específicas das Pessoas com Deficiência no seu dia-a-dia, da grande maioria das pessoas perante as nossas reais necessidades, pois ainda lhes fazem certa confusão de como pode uma pessoa com surdez ser capaz de falar através da boca, com voz, e ainda assim fluentemente quer com sotaque ou não. Há uma cultura desfasada da realidade que a sociedade ainda vê.   

 

07  - A comparação inevitável como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?

AI - Diz-se que temos as melhores leis do mundo, teoricamente falado, pois, na prática estamos muito aquém dos outros países europeus, os quais tenho visitado e colaborando, perdeu-se tanto tempo nos interesses políticos em implementarem prioridades essenciais, quanto mais fundamentais para uma vida digna a todas as Pessoas com Deficiência tais como o direito ao emprego, às adaptações dos postos de trabalho, o não melhoramento do SAPA em tempos de respostas úteis, à falta de fiscalização, a inacessibilidade plena em todas as vertentes profissionais e culturais. Estamos muito atrasados, e lamento profundamente que o Governo português não veja o enorme potencial das pessoas com deficiência enquanto optam por continuarem a brincadeira nas votações por norma chumbadas em plena assembleia pública promovendo ainda mais a política assistencialista nesta sociedade desigual.  

 

08 – Como acha que vão ser os próximos 10 anos das pessoas com deficiência?

AI - Será a continuidade de um percurso desafiante, imerso de dificuldades, e cabe a cada um de nós assumir a responsabilidade de continuar a pavimentar o caminho nos sítios certos e junto de pessoas que têm igualmente uma visão semelhante para a concretização desse mundo semi-utópico estar ao nível de outros países europeus e assim todas as pessoas com deficiência poderem dignamente ter as suas vidas o mais fluídas possível.

 

09 – Como deseja que sejam os próximos 10 anos da sua vida?

AI - Transformadores. Desafiantes. Enriquecedores.

E para finalizar um pequeno trecho de um livro que muito gosto:

" (...) Lembra-te que a magia acontece para lá da zona de conforto, quando te permites mergulhar na linha do desconhecido/medo. O medo é apenas uma sala escura que aguarda e anseia a luz da tua chegada. (...) ". "Manuscritos de um Yogui" , pág 147.

 

10 – Que mensagem deixa a plural e singular pelos 10 anos de existência?

AI - É sem a dúvida a única revista online, mais completa em Portugal que aborda várias vertentes sobre a deficiência, assumindo um importante papel na divulgação, participação, distribuição de temas relevantes com uma leveza há muito necessária em conjunto com organizações representativas de pessoas com deficiência a nível nacional e internacional. Espero que os próximos 10 anos sejam ainda mais ricos do que já são, e que em conjunto possamos continuar a promover a mudança tão esperada por um Portugal totalmente inclusivo.   

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