Rui Machado: “Será importante dar continuidade aos ganhos alcançados e tentar que cheguem a todas as pessoas”
- Escrito por Paula Fernandes Teixeira
- Publicado em Portugal
Psicólogo, escritor, ativista, reivindicativo, sonhador, Rui Machado é o segundo entrevistado pela Plural&Singular para o artigo de capa que assinala os 10 anos desta revista digital. Tem 39 anos e trabalha na APPACDM do Porto. Uma doença neuromuscular e um Portugal que, sobretudo para alguns tipos de deficiência, “ainda esquece e discrimina”, obrigaram-no a fazer uma “travessia no deserto” que só nos últimos 10 anos começou a ser transponível. Cocriador do Movimento “Sim, nós fodemos”, integra o projeto-piloto de assistência pessoal do Centro de Apoio à Vida Independente.
01 – Quem é o Rui Machado: como se vê, como as pessoas o veem?
Rui Machado (RM) – Essa questão fez-me recordar um episódio da minha adolescência. Estava do 11.º ano e a aula era de filosofia. O professor, como habitualmente, fazia a chamada e chegou ao meu nome: Rui Machado. Uma vez e eu nada. Segunda, terceira e eu igual. A quarta tentativa já foi com uma oitava abaixo e aí eu respondi: "eu peço desculpa, professor, eu ainda não estou certo de quem sou". A sua cara vestiu-se com um ligeiro sorriso, por debaixo da barba densa que honrava a sua profissão. Quis responder-me: "Rui, hás de falar sempre assim" e continuou o seu serviço. Concluo, portanto, que falar de mim não é o assunto da minha predileção e que já assumo a incompetência para o fazer desde há muito. Mas isso já quer dizer alguma coisa. Já consigo assumir-me como alguém em permanente tormento por tudo o que sinto e vejo acontecer à minha volta. Gosto de tentar perceber quase tudo e de, dentro do que me é possível, promover as mudanças em que acredito que todos ganham. Nunca gostei da palavra não e poucas vezes acreditei nela. Isso fez de mim um homem trabalhador e também insuportável na teimosia que tenho de aplicar nos meus objetivos. E, apesar disso, falhei. Falho. Falhamos sempre, é inevitável. O importante é que, apesar disso, continuemos a acreditar. Eu acredito apesar de ter tido momentos muito difíceis na minha vida. Quero continuar a acreditar em todos os domínios da minha vida: desde a minha carreira até ao ativismo passando pela família que ainda resta. Para suportar tudo, socorro-me muitas vezes de humor. Adoro pensar que tudo pode ser uma brincadeira. Se me vissem nestes moldes eu acho que conseguiria sentir-me orgulhoso. Mas não sei realmente como me veem.
02 – Como foram os últimos 10 anos na sua vida?
RM – Em 10 anos cabe muita coisa. Foram anos duros mas também felizes. Constituíram a minha travessia no deserto. Porque devido à minha deficiência – ainda não encontrei outra razão – sofri uma forte exclusão e vi-me arredado dos mais variados domínios da vida. Estes 10 anos constituíram a conquista de coisas que o cidadão normativo alcança sem dificuldades maiores ou tão grandes quanto uma pessoa com deficiência experimenta. Confesso que não gosto de pensar o quanto demorou e o quão difícil foi. Facto é que hoje tenho o meu trabalho, uma casa para morar, um veículo para me deslocar e continuo a viver a felicidade de escrever e de poder contribuir para a melhoria da vida de outras pessoas através do meu trabalho e associativismo.
03 – Quais foram os momentos mais marcantes?
RM – Os momentos mais marcantes foram fundamentalmente dois: ter conseguido um emprego e assistência pessoal. Estas duas conquistas foram aquelas que abriram caminho a outras impossíveis de esquecer e que tiveram em mim um impacto próximo de eu ter medo de rebentar de felicidade. São exemplo a saída de casa dos meus pais, ter vivido com a minha companheira de então e ainda ter carro para me deslocar para onde bem entendesse. A escrita também continua a ser muito marcante a nível pessoal. Nestes 10 anos publiquei seis livros e lembro-me de cada uma das apresentações como se tivessem sido hoje.
04 - Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?
RM – A evolução existiu e é indesmentível. Mas também é indesmentível que ainda existem pessoas fortemente discriminadas e vítimas de uma severa discriminação social. Existe, assim, um sabor agridoce quando pensamos nos últimos 10 anos.
Acho importante salientar que existiram significativos avanços na inclusão das pessoas com deficiência. Mas não para todas estas pessoas. Por vezes esquece-se que a própria comunidade de pessoas com deficiência é muitíssimo diversa abarcando múltiplas realidades e necessidades. Consigo reconhecer avanços importantes para pessoas com deficiência motora e sensorial. Reconhecer esses avanços nas pessoas com deficiência intelectual, já é mais difícil o que demonstra algo de dramático: esta população acaba por ser ainda muito esquecida e altamente discriminada; são uma espécie de terceira margem do rio, como escreveu Guimarães Rosa.
Ainda assim são 10 anos que avalio genericamente como positivos. Agora será importante dar continuidade aos ganhos alcançados e tentar que cheguem a todas as pessoas.
05 – Em que áreas a evolução foi mais positiva?
RM – Logo à cabeça surge-me um acontecimento que para mim representou uma evolução histórica. Refiro-me ao facto de as próprias pessoas com deficiência terem chegado aos órgãos de poder e decisão dando corpo à máxima "nada sobre nós sem nós". Não será, com certeza, uma coincidência que nos tempos em surgiu um deputado com deficiência, um presidente do Instituto Nacional para a Deficiência e uma Secretária de Estado também vinda da mesma comunidade, tenham sido feitas reformas importantes para a inclusão e ainda que novas abordagens respeitadoras nomeadamente da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência tenham conhecido o seu surgimento, como foi exemplo o Modelo de Apoio à Vida Independente. Mas outros avanços houve e merecem referência em jeito de balanço. O surgimento de legislação do Maior Acompanhado, Empregabilidade, Ensino Inclusivo e das Acessibilidades mostram que existiu trabalho durante os últimos anos. No entanto, na tentativa de colocar no terreno toda esta legislação já se perceberem que existem aspetos que necessitam de melhoria.
06 – O que ficou por fazer?
RM – Há sempre algo para fazer, nem que seja pela razão de o conhecimento estar sempre a evoluir. Mas há uma atenção particular que deve ser dada aos cidadãos portugueses com deficiência intelectual e ainda nunca foi dada. Se quisermos colocar a questão de forma simples estas pessoas constituem os excluídos dos excluídos e é importante contrariar essa tendência.
O facto de terem existido avanços muito significativos como ainda muito trabalho estar por fazer, tem uma dimensão que me preocupa e que roça um pouco uma inquietante perversidade. Neste contexto acho particularmente importante a forma como a comunidade de pessoas com deficiência comunica e surge publicamente. É crucial que não se caia no erro das críticas excessivas ou "fanatismos" nos domínios onde houve efetivamente avanços – que apesar de tudo consigo perceber e posso legitimar por existirem pessoas a viver um grande sofrimento sem qualquer perspetiva de futuro – mas também é essencial que a luta nunca pare e que não se aceite "pouquinho" quando do que se fala é de direitos humanos. Este equilíbrio será um enorme desafio para o futuro.
Não devemos esquecer este desafio dentro da luta que teremos que travar. Precisamos que nenhuma pessoa com deficiência seja esquecida e ainda que não haja qualquer regressão nas conquistas já alcançadas. Esperemos que a melhoria dos diplomas de que falei chegue a todos e que conheçam as melhorias que merecem. Por exemplo, há quantos anos se luta pela acessibilidade neste país? O que falta fazer? Pelo menos falta aplicar rigorosamente as leis aprovadas.
07 – A comparação inevitável: como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?
RM – Não me parece que haja uma diferença tão significativa quanto se diz. Depende muito do assunto que estiver em apreço. Por exemplo se falarmos em Vida Independente o atraso que temos perante alguns países é tão grande quanto vergonhoso. Se pensarmos em acessibilidades pouca diferença encontramos em países no coração da Europa, como por exemplo a Bélgica. E ainda se o assunto for produtos de apoio estamos muito melhor servidos que a nossa vizinha Espanha.
Não há claramente uma diferença importante, pelo que já não considero produtivas essas comparações que muitas vezes caem no tradicional "bota-baixismo" português. Mas é bom que estejamos atentos ao que acontece lá fora porque pode indicar caminhos e oferecer conhecimento.
08 – Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?
RM – Uma incógnita. As conquistas dos direitos das pessoas com deficiência são habitualmente muito lentas e ainda há sempre o angustiante sentimento de serem invariavelmente frágeis, mais dependentes de políticos que tantas vezes nos viraram as costas, do que de cidadãos de países humana e socialmente maduros, que honestamente ainda não sei se é o nosso. Infelizmente é impossível saber ou garantir que será conquistado o que está ainda em falta ou se até não iremos perder aquilo que já temos. Viver será sempre um desafio. Todavia, para uma pessoa com deficiência é muitas vezes assustador. Uma incógnita cheia de medos e ansiedades. Seria bom também viver com alguma serenidade.
09 – Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?
RM – Gostava que fossem anos tranquilos sem os sobressaltos, medos e angústias de que falei anteriormente. Mas é quase impossível. Gostaria de ter uma situação profissional mais estável e ter a certeza absoluta que a Vida Independente em Portugal nunca iria acabar. Isso já seria extraordinário para mim, a par de a saúde se manter estável.
10 – Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?
RM – A palavra que me surge é obrigado. São dois obrigados, na verdade. Um, a nível pessoal, por me terem permitido ser cronista durante algum tempo na vossa publicação que se revelou um espaço de liberdade e onde fui dando conta dos temas que me parecem centrais no tema da inclusão da pessoa com deficiência. O segundo enquanto membro da comunidade de pessoas com deficiência por terem construído um espaço ímpar para dar visibilidade aos temas mais importantes da nossa vida. Por incrível que possa parecer ainda constituímos uma realidade desconhecida para muita gente e a visibilidade continua a ser essencial para responsabilizar todos os cidadãos para sociedade que constroem ou deixam construir.
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