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updated 6:28 PM UTC, Nov 11, 2024
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ESTEJA ATENTO: a Plural&Singular faz 10 anos e vai lançar a 28.ª edição da revista digital semestral que dá voz às questões da deficiência e inclusão

Ana Sofia Antunes: “As pessoas com deficiência têm mais espaço, mais visibilidade e estão cada vez mais nas ruas e não dentro de casa e dentro de respostas sociais”

É Secretária de Estado da Inclusão e a primeira entrevistada pela Plural&Singular para o artigo de capa que assinala os 10 anos desta revista digital. Antes de ser eleita, em 2015 enquanto Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, exerceu advocacia, foi assessora jurídica na Câmara Municipal de Lisboa e presidente da ACAPO. É mulher, mãe, teimosa, bem-disposta e alegre. É no presente que fala dos 10 anos passados, em jeito de quem faz um balanço da atuação do Governo em matéria de inclusão das pessoas com deficiência.

01 - Como é que se vê. E como é que as pessoas a veem? Em termos profissionais, familiares, características pessoais e na relação com a deficiência com esta área. Ou seja, quem é Ana Sofia Antunes?

Ana Sofia Antunes (ASA) - É uma mulher que tem 40 anos, tem deficiência visual congénita. De profissão é advogada, que exerceu alguns anos da sua vida. Tem uma colaboração muito estreita com as organizações da área da deficiência e do ativismo há cerca de 20 anos. Começou, naturalmente, por razões de proximidade e identificação do tipo de deficiência que tem, com associações representativas das pessoas cegas e com baixa visão. Depois foi alargando o contacto com outros movimentos mais alargados e representativos de outras pessoas com deficiência porque, efetivamente, muitas das causas são comuns e porque sempre achou que havia questões que dividiam as pessoas com deficiência e que só juntando pessoas com diferentes tipos de deficiência é que era possível ultrapassar essas mesmas divergências para conseguir criar posições mais fortes. A Ana Sofia, a par do desenvolvimento do seu percurso profissional enquanto advogada, mais tarde como consultora jurídica, foi também exercendo, a título de voluntariado, diferentes cargos nesta área do ativismo, sobretudo na ACAPO e depois, em 2015, é convidada para integrar o projeto do XXI Governo Constitucional. Aqui está há sete anos, integrando atualmente o XXIII Governo Constitucional com a função de tratar especificamente as questões da deficiência e tem vindo a alargar o espectro das suas responsabilidades e, neste momento, tem a parte da inclusão e da ação social, a seu cargo.
Como eu me vejo, é assim. Como é que os outros me veem? Isso é uma pergunta um bocadinho exigente. Sou teimosa, sou persistente, sou otimista, sou bem-disposta e alegre. Tenho dificuldade em ouvir “Não é possível”, tenho um bocadinho mau-feitio em alguns momentos, sou muito companheira. Sou uma pessoa de amizades fortes, embora não muitas. Sou um bocadinho seletiva também nesse aspeto, sou um bocadinho fechada em alguns aspetos também. Ganhei se calhar algumas couraças e algumas carapaças em virtude da visibilidade pública e do enorme julgamento a que estamos sujeitos no dia-a-dia, face a isso. Conforme o tempo vai passando vamos sentindo a necessidade de, cada vez mais, pertencer a um núcleo que seja só nosso e depois isso tem consequências que não são positivas que é às vezes nos fecharmos um bocado de mais e ganharmos defesas a mais.

02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?

ASA - Do ponto de vista do meu envolvimento nas causas da deficiência foram importantes, antes da minha colaboração no Governo, porque foram anos duros do ponto de vista social e do próprio respeito pelos direitos das pessoas com deficiência. Vivemos o período da Troika, nessa altura em vivi isso do ponto de vista ativista e nas ruas com as pessoas com deficiência e foram anos que me marcaram, muitos de nós. Ajudaram-nos a consciencializar que é preciso não dar nada por garantido, não dar direitos por garantidos, porque às vezes coisas muito básicas ficam postas em causa e se não lutarmos por elas, ninguém o fará.
Foram anos em que aprofundei e diversifiquei conhecimento em muitas áreas, foram anos de grande impacto a todos os níveis. Foram anos em que viajei bastante, quer a título pessoal, quer a título profissional e tive oportunidade de conhecer muitas outras realidades que me fizeram, em muitos aspetos, questionar a nossa realidade em Portugal através de alguns bons exemplos, mas também valorizar aquilo que temos cá e não sabemos valorizar. E do ponto de vista pessoal, nos últimos 10 anos, foram os anos em que eu fui mãe e isso mudou tudo.

03 - Quais foram os momentos mais marcantes?

ASA - O momento em que fui eleita como presidente da ACAPO em 2013, o convite para vir para o Governo em 2015 e o ter sido mãe.

04 - Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?

ASA - Foram anos muito díspares, passamos por anos complicados. Os anos da troika acho que foram complicados para toda a gente e as pessoas com deficiência não passaram ao lado disso. Naqueles anos que foram negros para todos, não houve cuidado, uma atenção especial para tentar excecionar aquelas medidas, absolutamente…Foi cortar a direito. Não é por acaso que, em 2012 e 2013, há um conjunto de pessoas com deficiência que vão para as ruas questionar precisamente os cortes que estavam a existir na atribuição de produtos de apoio colocando em causa, coisas tão básicas como atribuir fraldas, que é o mais básico da dignidade de uma pessoa. Mas felizmente que aconteceu porque acho que criou uma consciência cívica no seio de um conjunto de pessoas com deficiência que, na altura, ganhou raízes e que ainda hoje se mantém e eu acho que é importante. Mesmo que hoje muitas vezes o alvo dessa contestação possa ser eu. Ainda bem que assim é, não vejo isso de outra maneira.
Se cá estou desde 2015 espero que cá esteja a fazer alguma coisa, tenho a certeza que algumas coisas foram feitas de 2015 até agora. Amanhã, 26 de novembro, completam-se, precisamente, sete anos do dia em que tomei posse como secretária de Estado. Acho que a nossa primeira conquista - e foi muito rápida na altura - foi a criação da Prestação Social para a Inclusão que é uma medida que, em termos de dimensão, do número de pessoas que abrange e também em termos de impacto financeiro global, talvez seja incomparável com qualquer outra. Em termos de números, nós neste momento estamos com o dobro do valor que era investido em prestações sociais para pessoas com deficiência - duplicou de 2015 a 2022. É a medida perfeita? Não. Não há medidas perfeitas, nem há prestações sociais perfeitas e temos vindo a corrigir aspetos, desde 2015, até agora: Corrigir a questão de haver pessoas que já tinham ultrapassado a idade dos 55 anos e que estavam de fora. Mais recentemente corrigimos as situações em que tínhamos pessoas com deficiência que só tinham obtido o atestado multiusos após os 55 e que tivessem deficiências anteriores. Mandamos fazer juntas médicas adicionais para considerar essa situação. Continuamos a ter pedidos de alteração, reivindicações da alteração das condições da prestação, nomeadamente, que a componente base não tenha em conta rendimentos de trabalho da pessoa com deficiência logo a partir dos 60% de incapacidade. Há coisas a que conseguimos atender, há coisas que ainda não conseguimos atender por uma razão simples: a medida já tem um impacto financeiro muito grande e qualquer decisão que se tome relativamente a estas condições de acesso pode ter um impacto tal no custo da medida que, a certa altura, possa pô-la em causa em termos de sustentabilidade e isso também não queremos. E cada passo tem que ser estudado com calma para não perdermos de uma vez tudo aquilo que conquistamos efetivamente. Mais medidas que eu considero emblemáticas e que foram aprovadas nestes anos, se eu tivesse que escolher outras, escolheria o Modelo de Apoio à Vida Independente e a disponibilização de assistência pessoal. Claro que ainda não como eu quero que ela [a medida] seja. Para o ano será certamente melhor e diferente. Agora ainda sobre a forma de projetos-piloto, a chegar a 1058 destinatários no último mês, mas queremos mais, claro que queremos mais. Mas já são 1058 e isso já me deixa muito feliz. Pensar que em 2019 começamos com setecentos e poucos e conseguimos crescer em mais de trezentos destinatários em três anos é bom. Agora queremos isto como modelo definitivo e chegar a cada vez mais pessoas, tantas quantas queiram esta mudança na sua vida.

05 - Em que áreas foi mais positiva a evolução?

ASA - Houve outros aspetos que para mim foram fundamentais mas não sei se as pessoas valorizam da mesma forma que eu valorizo que aqui estou e que trabalhei muito diretamente neles: a revisão da legislação da educação inclusiva, que em muitos aspetos hoje é contestada por alguns pais, mas que eu não tenho dúvida nenhuma de que o que foi aprovado é uma legislação que foi no sentido certo e que está a ir no sentido certo. Aquilo que conseguimos evoluir em matéria de acessibilidade, em termos de apuramento da legislação, em termos de verbas destinadas a lançar candidaturas e a conseguirmos fazer obras no terreno são algumas das medidas que se calhar eu destacaria nestes últimos 10 anos.

06 - O que ficou por fazer?

ASA - Quando não houver coisas que tenham ficado por fazer, não estamos cá a fazer nada porque já fizemos tudo, podemos arrumar a casa e ir embora. Ainda temos para fazer: temos uma tabela nacional de incapacidades para rever para criar um sistema de avaliação mais justo e equitativo. Temos um sistema de atribuição de produtos de apoio cuja eficiência tem que melhorar, tem que se basear na possibilidade de adquirirmos os produtos e equipamentos em causa de uma forma mais ampla, temos que dinamizar os bancos de produtos de apoio, que possamos reutilizar produtos de apoio e entregá-los a várias pessoas. Temos que melhorar o funcionamento integrado entre alguns aspetos do atendimento na saúde, na educação e na segurança social – isso vê-se muito presente ao nível da intervenção precoce que precisa, efetivamente, de uma melhoria e de algumas mudanças no próprio sistema e na forma como funciona. Temos que aperfeiçoar as normas técnicas de acessibilidade do Decreto-lei 163 até ao final do mandato. Queremos melhorar as condições de fiscalização no terreno, estivemos estes anos todos a conseguir lançar concursos para contratar pessoas para integrarem as equipas do INR, não tínhamos equipa e agora temos equipa. E por mais que os queiramos pôr na rua a fiscalizar, agora temo-los ocupados com as candidaturas do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]. Queremo-los na rua a fazer fiscalização, - quer dizer, não é que eu ache que isto se faça desta forma mas às vezes se calhar tem que ser - avançar com as contraordenações para se perceber que incumprir não é algo que esteja isento de consequências e é preciso que esta mensagem passe. Eu não digo que não vamos lá pela sensibilização, eu acho que o temos de fazer de todas as formas. Temos que sensibilizar mas também temos que mostrar às pessoas que continuar a não fazer bem tem consequências e essas consequências têm que aparecer. Há tanta coisa que tem que ser feita ainda.

07 - A comparação inevitável: como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?

ASA - Eu não tenho um conhecimento muito abrangente daquilo que é a realidade dos países europeus ou pelo menos de todos os países europeus. Eu conheço coisas que funcionam bem em determinados países europeus, conheço coisas que funcionam menos bem, depende muito do país de que estamos a falar e da sua própria realidade socioeconómica, são realidades muito diferentes. Eu não posso comparar Portugal com a Alemanha, nem a Suécia com a Bulgária. Apesar de todos sermos estados-membros de uma mesma União Europeia e fazermos um esforço para termos harmonização de políticas – ainda ontem tivemos oportunidade de aprovar em Conselho de Ministros a transposição da diretiva relativa à acessibilidade a produtos e serviços para pessoas com deficiência e isso resulta do trabalho da própria União Europeia de tentar harmonizar o que é exigido em todos os países, para não se exigir muito nuns e pouco noutros. Isto é importante de facto, agora eu não posso querer comparar aquilo que em Portugal somos capazes de dar em termos de apoios económicos e financeiros em termos de prestações àquilo que dá um país como a Suécia ou como a Alemanha. Também tenho que me orgulhar muito quando temos países como a Suécia e a Alemanha ou mais recentemente a Finlândia que é tida como o suprassumo dos modelos educativos e que o é, efetivamente, a pedirem para vir cá conhecer as nossas escolas - quer dizer que nós se calhar não andamos a fazer assim tudo tão mal – e querem perceber como é que nós conseguimos fazer inclusão de crianças com deficiência nas escolas regulares. Certamente com umas a funcionar bem e com outras a funcionar menos bem. Mas eles reconhecem-nos isso e se calhar eles reconhecem-nos mais isso do que nós próprios que estamos cá dentro. Quando falamos de Vida Independente. Nós temos diferentes modelos de Vida independente a funcionar em vários estados-membros. Temos o muito falado, o modelo sueco que toda a gente diz que é o protótipo dos princípios que regem a ENIL The European Network on Independent Living e a história dos “direct payment” [pagamentos diretos] e da gestão direta de uma pessoa com deficiência de todos os aspetos relacionados com o assistente pessoal. Modelo com o qual eu não tenho nenhum tipo de discordância de fundo, mas que efetivamente aquilo que sabemos é que começou como um modelo muito amplo e perfecionista e tem regredido nos últimos anos e que tem vindo a ter cada vez menos destinatários e eles próprios, internamente, estão a fazer a reavaliação do próprio modelo. Modelo que, por exemplo, não chega às pessoas com deficiência intelectual ou com problemas do foro cognitivo porque as pessoas não conseguem fazer a dita autogestão total de que se fala nesse modelo. Temos a Irlânda com um modelo de Vida Independente que tentou implementar e que ao fim de dois anos deixou de existir porque não funcionou. Temos modelos diferentes. Como é que nós nos posicionámos? É difícil uma resposta a essa questão: certamente muito bem em algumas áreas, muito mal noutras. O esforço é tentar, de forma transversal e melhorando um pouco nas diferentes áreas que dizem respeito à vida das pessoas com deficiência.

08 - Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?

ASA - Se eu tivesse uma bola de cristal, se calhar dedicava-me a outro tipo de previsões. Em termos racionais, acho que há conquistas que estão feitas e que dificilmente vão regredir e acho que as pessoas vão poder contar com isso nos próximos 10 anos e se possível nos outros 10. Acredito que seja possível nos próximos 10 anos que as pessoas com deficiência tenham uma maior presença no mercado de trabalho. Acho que isso é algo que progressivamente temos sido capazes de ver a acontecer cada vez mais. Acho que, progressivamente, as pessoas com deficiência têm mais espaço, mais visibilidade e estão cada vez mais nas ruas e não dentro de casa e dentro de respostas sociais. Acredito que isso também se vá destacar e crescer nos próximos 10 anos. E quero acreditar muito que os próximos 10 anos serão anos de crescimento, de melhoria das condições de vida das pessoas com deficiência, sem prejuízo de sabermos que em determinados aspetos também haverá ajustes que se vão densificar, complexificar: o acesso a determinadas profissões que cada vez serão mais tecnológicas e se não forem de raiz tecnologias preparadas para que as pessoas com deficiência as possam exercer, cada vez mais haverá uma tendência para que seja difícil às pessoas com deficiência chegarem a determinados tipos de profissões. Agora também quero acreditar que o mercado terá capacidade de cada vez mais orientar as pessoas com deficiência para as profissões que lhe estão mais adequadas. No fundo acho que serão 10 anos com mais direitos conquistados, assegurados e consolidados mas necessariamente sempre com desafios. A tecnologia pode ser o grande desafio: se nós não interiorizarmos de uma vez por todas que a tecnologia tem que nascer acessível e não tornar-se depois acessível, a vida das pessoas com deficiência vai ter estes desafios adicionais.

09 - Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?

ASA - Não faço futurologia, há muito tempo que aprendi a não fazer isso. Aberta aos desafios, cheia de vontade de fazer coisas novas, mas não faço futurologia. [Daqui a 10 a sua filha terá que idade?] 14 [anos], será uma adolescente insuportável, certamente. Ela já tem um feitiozinho daqueles…

10 - Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?

ASA - Resiliência. Eu sei que é uma palavra que é um bocado chata, que está na moda e toda a gente diz. Mas é importante que um projeto como a Plural&Singular se mantenha cá por mais 10 anos e por mais alguns, se possível. Eu sei que o que estou a dizer pode ser motivador, mas também exigente porque certamente também depende muito do esforço individual de alguns, mas aquilo que se consegue fazer e transmitir, ainda temos poucos meios de comunicação a fazê-lo de forma sistematizada e a debruçar-se sobre este tema como vocês o fazem. É importante que se consigam por cá manter.

 

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