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updated 5:17 PM UTC, Dec 13, 2024
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O mercado imobiliário português

O mercado imobiliário em Portugal sofreu transformações profundas, que moldaram não apenas os preços das casas, mas também o acesso às mesmas. Esta evolução, no entanto, não foi acompanhada pelos rendimentos das famílias, acentuando o fosso entre a capacidade financeira dos cidadãos e os preços praticados.

“Nos últimos 10 anos, o mercado de habitação, em particular, teve uma grande evolução. Os preços subiram bastante na grande parte dos municípios em Portugal. O preço do metro quadrado duplicou, quer dizer que o preço das casas vai duplicar também, e porque os rendimentos não acompanharam essa subida, houve uma grande, grande transformação”. Gonçalo Antunes

Desta forma, o direito a uma habitação condigna fica por cumprir para muitas pessoas devido à pressão de vários fatores económicos e sociais, nomeadamente o crescimento do turismo e o impacto do alojamento local.

Gonçalo Antunes destaca que frações habitacionais tradicionalmente destinadas à moradia foram convertidas em "espaços de alojamento local, especialmente em Lisboa, que hoje conta com mais de 20 mil dessas unidades". Esses imóveis, originalmente projetados para serem residenciais, agora são utilizados para fins turísticos, reduzindo significativamente a oferta disponível para habitação.

A esta realidade, aponta, acrescenta-se o interesse estrangeiro pelo mercado imobiliário português, “um fenómeno que era quase inexistente há 15 anos, quanto muito havia procura de propriedades no Algarve”. Os estrangeiros, entretanto, começaram a comprar propriedades em Lisboa e no Porto, muitas vezes influenciados por programas como os Vistos Gold. Embora o programa tenha sido controverso, contribuiu para a entrada de capitais estrangeiros, transformando o mercado e aumentando os preços das propriedades.

Outro elemento transformador identificado por Gonçalo Antunes é a chegada dos grandes fundos imobiliários internacionais. Até cerca de 2010, Lisboa não era um alvo significativo para esses investidores, ao contrário de outras capitais europeias. Porém, com o tempo, a cidade tornou-se um mercado atrativo. Gonçalo Antunes explica que esses fundos compram propriedades como ativos financeiros, com o objetivo de valorização ou de remodelação para venda enquanto imóvel de luxo.

“Obviamente que o seu objetivo é de lucro: ter aquelas propriedades mais como ativo financeiro do que propriamente outra coisa.  Às vezes podem vir com a intenção de comprar um prédio que está meio arruinado para o reabilitar, mas, nesse caso, será seguramente para vender as habitações a um segmento imobiliário de luxo”. Gonçalo Antunes

O cenário atual de construção habitacional em Portugal também reforça a crise. O geógrafo destaca que "hoje construímos muito menos casas do que há 20 anos", um dado preocupante considerando o crescimento da procura por habitação. Há duas décadas o país chegava a construir mais de 100 mil habitações por ano, enquanto atualmente o número ronda as 15 mil casas.

Além de ser um número baixo, Gonçalo Antunes aponta para a existência de uma mudança significativa no tipo de habitação construída: Atualmente, a maioria das novas construções dá resposta ao segmento de luxo ou a famílias com rendimentos muito elevados, agravando a exclusão habitacional.

“Antigamente as habitações novas que entravam no mercado eram muito heterogéneas: eram para a classe média, eram para a classe alta, ou seja, existiam várias opções a entrar no mercado. E hoje em dia, aquilo que de novo aparece é tudo para um segmento muito elevado. E, portanto, há uma enorme falta de construção para a classe média, além de haver falta de construção de habitação para renda acessível”. Gonçalo Antunes

Essa dinâmica tem contribuído para a exclusão de grande parte da população, nomeadamente, da classe média que procura casas a preços acessíveis. “Tudo isto deriva de uma herança de políticas de habitação em Portugal que sempre foram relativamente frágeis”, remata o geógrafo.

Durante a elaboração da tese de doutoramento, Gonçalo Antunes apercebeu-se que, “das leituras que estava a fazer sobre políticas de habitação, não existia em Portugal nenhuma leitura transversal” e, foi nessa altura que decidiu meter mãos à obra e fazer um estudo de âmbito nacional “que analisasse de forma ampla e de forma alargada do ponto de vista temporal, todas as medidas que foram aplicadas ao longo do tempo, desde meados do século XIX”.

“Houve uma altura em que decidi que ‘ok vou abandonar a ideia da tese original e vou recompor tudo isto para um novo tema’”, começa por dizer. “É sempre uma decisão difícil porque já tinha passado algum tempo”, admite.  Olhando para trás, não se arrepende da escolha que fez, embora na altura o tema não fosse tão badalado considera que “foi a melhor decisão que podia ter tomado”.

Em 2014, altura em que tudo aconteceu, as políticas da habitação estavam esquecidas e na altura Gonçalo Antunes ainda não sabia que, passado uns anos, o tema ia estar na ordem do dia.

Pelo meio surgiram duas obras essenciais para a compreensão da área em que se tornou especialista - "Políticas de habitação 200 anos" (2018) e "Direitos Humanos e Habitação: evolução do direito à habitação em Portugal" (2021) – e que ajudam a avaliar o que se fez nesta matéria.

Nota para o surgimento do 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação que teve como objetivo a “promoção de soluções habitacionais para pessoas que vivem em condições habitacionais indignas e que não dispõem de capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada”.

Foi em 2018 que este programa, que financia habitação para populações vulneráveis, surgiu, mas a gentrificação que expulsou os moradores dos centros urbanos leva a um grande número de protestos e manifestações. O Programa de Arrendamento Acessível em 2020, tenta controlar os preços das rendas mas a Pandemia de COVID-19 expõe ainda mais as desigualdades e as dificuldades no acesso à habitação e mostra que as casas a preços controlados é inexistente para a procura.

Ao longo dos séculos, as políticas de habitação em Portugal evoluíram de um modelo liberal, com escassa intervenção pública, para abordagens mais centralizadas e sociais.

Em maio de 2024 o governo apresenta 30 medidas estratégicas para enfrentar a crise na habitação e incentivar a oferta de casas. “Construir Portugal: Nova Estratégia para a Habitação apresenta-se como uma “resposta urgente às dificuldades na aquisição ou arrendamento de casa sem esquecer o longo prazo de um desafio que é geracional”.

Apesar dos avanços, desafios como a desigualdade no acesso, especulação imobiliária e segregação urbana continuam a ser relevantes. “As políticas de habitação que nós fomos tendo, ao longo dos tempos, são em grande medida casuísticas, pontuais e circunstanciais, e foram quase sempre a correr atrás do prejuízo” avalia considerando que as medidas são sempre “reativas e não proativas”.