Nada sober vós sem vós

Log in
updated 5:17 PM UTC, Dec 13, 2024
Informação:
ESTEJA ATENTO: a Plural&Singular é agora uma revista de diversidade, equidade e inclusão (DEI) - dá agora voz às questões de género, de orientação sexual, de deficiência, de classes, religiosas, étnicas, etc

Goreti Santos: “Como uma pessoa qualquer, mereço o respeito de todos. Nós somos todos iguais”.

Nasceu na Póvoa de Varzim e lá viveu até aos 18 anos. “Fui pedida em casamento e fiquei aqui”, diz Goreti Santos, referindo-se a Guimarães. Ainda tem família naquela terra de pescadores, mas onde, praticamente, não faz vida: “Tenho muita família, mas não vou lá”, admite porque, entretanto, os pais foram viver para Trofa. “E foi aí que a minha mãe faleceu, em Vilarinho. O meu pai ainda é vivo”, revela.

Depois de casar veio morar para a casa da sogra, de quem cuida agora. “Sempre morei aqui porque ele [o marido] já morava aqui. Portanto, a sogra agora é uma mulher idosa de quem Goreti Santos toma conta.

Teve vontade de sair do bairro social onde ainda vive há 35 anos, mas todas as tentativas de arranjar uma casa noutro local foram marcadas por episódios de discriminação. “Eu estive muito tempo para alugar a casa e não consegui. E a doutora Rita ajudou-me imenso, mas não consegui porque eu ligava, as pessoas mandavam-me ir lá e depois, quando eu ia lá e viam que eu era cigana não aceitavam. Diziam que estava alugada, que estava para outra pessoa e não sei quê, pronto”, descreve. Nem mesmo a oferta de seis meses de renda adiantada foi suficiente para superar o preconceito.
A técnica da Fraterna, Rita Miranda, recorda vividamente esta fase: “Ela cuidava das sobrinhas, ambas menores de idade, e residiam na mesma habitação que partilhava com a sogra onde também vivia com um tio diagnosticado com esquizofrenia, que frequentemente apresentava comportamentos violentos. A Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) sugeriu que ela deixasse a casa, e foi nesse momento que procurámos ajudar. Infelizmente, não conseguimos encontrar uma solução para alugar”, lamenta.


“Cheguei a ser eu a telefonar, e dizia, assim: ‘eu estou a telefonar, fala de uma instituição, eu quero alugar uma casa para uma senhora cigana, nós conhecemos a pessoa em causa, garanto-lhe que é uma pessoa de bem, que vai pagar, inclusivamente quer oferecer seis meses adiantado”, começa por relatar. “Eu até me lembro onde é que era a casa’, recorda-se Rita Miranda. “Era para S. Torcato”, completa Goreti Santos.
Era uma casinha pequenina mas Goreti Santos não precisava de mais, embora cuidasse das sobrinhas, não tinha filhos. Estas tentativas frustradas de garantir um ambiente seguro às meninas, longe do cunhado que, pela doença apresentava alguma instabilidade, aconteceram há 15 anos. “Nós ligamos para muitas casas”, garante Rira Miranda. “Na altura estava muito cansada”, admite Goreti Santos.
Quando chegou ao bairro há mais de três décadas inscreveu-se no Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para ter uma casa social mas entretanto foi para Paços de Ferreira em 2019. “Eu tinha lá uma prima a morar e ela disse: ‘Anda para aqui e faz aqui a tua vida. Falou com o senhorio, passou para o meu nome e fiquei lá a morar durante dois anos”.


Para aquele senhorio o facto de ser cigana não era um problema mas a vida deu mais uma volta e teve que regressar a Guimarães: “Depois voltei para aqui porque o meu cunhado, que já faleceu, andava muito doente. E ele disse para vir para casa, porque ele sentia que ia morrer, então viemos para aqui e passado 15 dias, ele faleceu”, recorda Goreti Santos.

Atualmente, enfrenta outro obstáculo relacionado com a habitação. Decidiu entregar a casa social que, entretanto, lhe foi atribuída, para cuidar da sogra. “Eu sou testemunha que ela veio aqui para comunicar ao IHRU que queria entregar a casa porque ia tomar conta da sogra, com a garantia de que quando a sogra falecesse pudesse ter uma habitação”, explica Rita Miranda.


A casa está vazia, contudo, enquanto o processo de mudança formal não é concluído, Goreti Santos continua a pagar renda pela antiga habitação, sob pena de perder o direito à mesma. “Ainda estou a pagar a renda. Vem a carta hoje, vem amanhã, nunca chegou. A carta ainda não veio. A técnica disse ‘isto ainda vai demorar um bocadinho’ e que ‘quando for para entregar a chave, eu ligo para si e venho cá”, diz. Já lá vai mais quase um ano.

O cenário é apresentado como um verdadeiro impasse burocrático: “Se deixar de pagar a renda, entra em incumprimento e pode perder o direito à casa”. Foi elaborada uma proposta que sugeria a mudança de Goreti para a casa da sogra, com a titularidade da habitação a ser transferida para o seu nome. A sogra chegou a assinar um documento a autorizar essa alteração.


“Estando no agregado da minha sogra eu fico mais descansada. Eu não vou entregar a chave enquanto não assinar o documento. No caso da minha a minha sogra falecer fico sem uma e sem outra. Eu tive muita dificuldade para arranjar casa”. Goreti Santos
A discriminação vivenciada por Goreti Santos e por outras pessoas das comunidades ciganas é sintomática de um problema maior: o racismo estrutural. “As pessoas têm medo. Por uns, pagamos todos. Há muito racismo”, diz. Essas barreiras impedem que muitos ciganos, além de arrendar casa e deixarem os bairros sociais onde residem, tenham dificuldades em arranjar trabalho.


Goreti Santos parece colecionar episódios de discriminação e na procura de trabalho também tem muitas histórias que explicam esta exclusão sistémica de que as pessoas ciganas são alvo: “Fui fazer estágio para o hospital e as pessoas escorraçavam-me de lá, porque não queriam lá ciganos. Só havia lá uma senhora que ‘era por mim’, acho que já está reformada. Era só essa senhora, as outras não me queriam”, lamenta.


De cada vez que vai Centro de Emprego arranjar trabalho acaba por ter incidentes e ser vítima de preconceitos e discriminação. Tinha pessoas à espera em filas mas a senhora viu que eu era cigana, virou-se para mim e disse: ‘Você é escusado estar aqui. Eu fico a olhar para ela”, relata incomodada. Passado um mês teve outro episódio semelhante. “Eu até fiquei sem sangue. Era um senhor, para fazer limpeza numa loja e quando viu que era cigana não disse boa tarde, nem nada, fechou a porta”, conta. “Nunca mais, eu vou lá, veem que sou cigana e tratam-me assim. Eu disse: ‘Não, para mim já chega”.

“Eu tenho uma irmã que ela trabalha, mas é assim, se a vir diz ‘não, ela não é cigana’. Ela não parece cigana porque é loirinha, tem os olhos azuis, branquinha. O meu pai também trabalhou sempre na Póvoa de Varzim, era pasteleiro”. Goreti Santos

Rita Miranda considera que os empresários mais jovens já têm outra forma de agir: “Têm alguma sensibilidade social, já vão aceitando. Mas habitação não. Ou adquires tu, por tua conta, vais ao banco e pagas ou aluguer não”, diz perentória. “Como vão sair do bairro se ninguém confiar neles? Se nunca ninguém lhes der uma oportunidade?”, conclui indignada.