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Catarina Oliveira: “Acho que os próximos anos vão continuar a ser anos de luta e de reivindicação, anos de conversa, de diálogo e de informação”

Descreve-se como “obstinada” e alguém que “procura deixar uma semente”. É consultora na área da diversidade e da inclusão, nutricionista, ativista dos Direitos das Pessoas com Deficiência com especial foco na área das acessibilidades. A Catarina Oliveira, que usa cadeira de rodas desde 2016 e acredita que a mudança de mentalidades nasce do diálogo, é a nona entrevistada pela Plural&Singular para o artigo de capa que assinala os 10 anos desta revista digital. 

01 – Quem é a Catarina: como se vê, como as pessoas o veem?

Catarina Oliveira (CO) – A Catarina é uma mulher de 34 anos que vive no Porto, nutricionista, consultora na área da diversidade e da inclusão e uma pessoa com deficiência motora. Em contexto pessoal e familiar, vejo-me como uma pessoa que ao longo dos anos foi percebendo a importância da coesão familiar. A minha família é uma base muito forte na minha vida. As minhas amigas também. Sou uma pessoa que gosta de grupos, de reuniões familiares e de reuniões de amigos…  A nível profissional, acho que sou uma pessoa obstinada que almeja sempre fazer mais alguma coisa no sentido de coisas que me preencham e tenham utilidade para o mundo. Sou uma pessoa que procura deixar uma semente, quer seja na área da nutrição, quer seja na área da deficiência. Sou uma pessoa teimosa, divertida, extrovertida, mas também tímida em alguns contextos. Faladora… Gostava de ser menos teimosa…

Há sete anos tornei-me uma pessoa com deficiência motora. Durante 27 anos não tive qualquer relação com a área da deficiência. Não acredito que se tenha de ser uma pessoa com deficiência para se estar alerta para estas questões e foi um bocadinho sem querer que a área da deficiência entrou na minha vida profissional. Estava em Medicina, passei para a Nutrição, sempre fui partilhando o meu dia a dia enquanto pessoa com deficiência, nomeadamente as situações de capacitismo que vivia. As partilhas no ‘Instagram’ tornaram-se um projeto porque começou a aumentar a comunidade, as pessoas começaram a identificar-se como pessoas que sofrem capacitismo e que praticam capacitismo e cresceu… Hoje é 80% da minha atuação e sinto-me muito feliz por isso.      

 

02 – Como foram os últimos 10 anos na sua vida?

CO – De 2012 a 2016, que foi quando passei a usar cadeira de rodas, foram anos muito conturbados. Não por algo em especifico, mas estava muito desencontrada da Catarina. Foram anos de muita indecisão. Não sabia o que queria ser, não estava feliz com o curso de Medicina, trabalhava e vivia sozinha e estava um pouco afastada da família. Foram anos de muita confusão mental em que eu claramente estava a navegar na maionese.

Fui para o Brasil e estava à procura de me encontrar… Fui sem perspetivas de voltar. Foi quando aconteceu a inflamação na medula, a paraplegia e a cadeira de rodas na minha vida. No fundo, não caindo no cliché da cadeira de rodas veio para mudar a minha vida no sentido em me encontrei, mas foi o momento mais marcante dos últimos 10 anos e houve uma transformação. Estive o ano de 2016 em pausa com reabilitação, fisioterapia… A cadeira trouxe-me o tempo que precisava para parar – foi uma paragem obrigatória para eu me recentrar e recentrei-me. Em 2017 tentei outra vez mais um ano de Medicina, percebi que estava na hora de fazer a transição para Nutrição, algo que sempre vi como um ‘hobbie’, e passei a encarar como profissão. Foi a melhor escolha da minha vida. A área da deficiência também começou a entrar no contexto profissional e desse 2018 até hoje têm sido os melhores anos da minha vida. 2022 foi muito bom para mim, quer a nível pessoal, quer profissional. A reviravolta deu-se com a entrada da cadeira de rodas na minha vida… No meu caso foi uma reviravolta para melhor.

 

03 – Quais foram os momentos mais marcantes?

CO – A reviravolta deu-se com a entrada da cadeira de rodas na minha vida… No meu caso foi uma reviravolta para melhor. É o momento mais marcante.

 

04 – Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?

CO – Eu, com propriedade, acho que só posso falar dos últimos sete anos. Nos três primeiros anos destes últimos 10, era uma pessoa sem deficiência. Honestamente, não tinha qualquer tipo de contacto com a área da deficiência. Não que eu ache que tenha de ser uma relação causal, ou seja ter uma deficiência e estar alerta para as questões ou não ter uma deficiência e não estar alerta para as questões. Depois apareceu a deficiência e, até 2018/2019, eu já pessoa com deficiência, também não estava alerta sequer para metade das coisas que estou hoje em dia. Hoje, trabalhando com a área tenho obrigação de me informar e de me esclarecer. Mas, efetivamente, antes não tinha a noção que tenho hoje.

Talvez desde a pandemia [da covid-19], que foi quando tive tempo para estudar e, após a pandemia surgiu a aproximação ao tema através do trabalho. Talvez aí tenha mais propriedade para avaliar. A pandemia trouxe muita coisa para a área da deficiência, no sentido em que muitas reivindicações que não eram ouvidas começaram a ser ouvidas de outra forma quando fomos todos mandados para casa. Muitas coisas que as pessoas com deficiência, nos seus trabalhos, na sua vida pessoal, na sua vida social, pediam e exigiam e nunca eram exequíveis, passaram a ser exequíveis. No entanto, uma pandemia também nos veio demonstrar que a pessoa com deficiência está, muitas vezes, no fim da cadeia alimentar. Muitas situações foram presenciadas de pessoas com deficiência literalmente deixadas ao abandono. Quem salvamos?! Quem protegemos?! A pandemia teve dois lados.

No regresso à chamada normalidade, acho que o último ano foi um ano em que se falou muito sobre a questão da deficiência. Mas não podemos continuar a falar só. Este ano vimos algumas coisas serem feitas, mas temos de sair da teoria e passar à prática.

Nestes últimos quatro anos acho que aconteceu uma coisa que algumas pessoas acham que não tem muito valor, mas para mim tem muito valor. As pessoas com deficiência estão, de alguma forma a ganhar voz e a chegar a meios que não chegavam antes. A temática da deficiência e dos direitos das pessoas com deficiência sempre estive em cima da mesa, mas se calhar durante muitos anos esteve no canto da mesa quase a cair para o chão e agora está a ir para o centro da mesa. Acho que, cada vez mais, quando se toca neste tema, se está a chamar a pessoa com deficiência para falar.

Acho que o facto de se falar mais da temática da deficiência nos últimos quatro anos, tem a ver com o aproximar do prazo para que as quotas sejam cumpridas a nível empresarial. O setor empresarial tem alguma pressão acrescida e fala-se mais sobre o assunto.

Uma pessoa que tem uma deficiência há 20 anos se calhar tem uma imagem completamente diferente. Da parte e período que me tocam, sinto que a comunidade de pessoas com deficiência, embora muitas vezes não esteja de acordo, tem mais voz. A pessoa com deficiência, neste momento, tem uma voz mais ativa e mais autónoma.       

  

05 – Em que áreas a evolução foi mais positiva?

CO – A área mais positiva, do meu ponto de vista, tem a ver com a Lei das Acessibilidades, mas tudo isso tem de ser revisto. Tem de haver mais fiscalização (ver resposta seguinte).

Acho que as pessoas com deficiência estão a alcançar diferentes públicos. Não falo só de mim, falo de muitas outras pessoas que estão a chegar a nichos.

As pessoas com deficiência sempre falaram, mas agora estamos a ser ouvidos. As pessoas estão interessadas em ouvir-nos e estão a perceber que têm de nos ouvir. Isso não é fácil de conquistar e está a ser conquistado pelas próprias pessoas com deficiência. 

 

06 – O que ficou por fazer?

CO – Falta passar à prática. No sentido de fiscalizar os locais, fazer cumprir a lei. A lei protege-nos, mas não é cumprida. Vejo isso diariamente. Ninguém fiscaliza, ninguém cumpre e a sociedade continua a ser construída, não se considerando a deficiência de base. É suposto ser considerada. Existe legislação – temos a lei anti-discriminação, a lei das acessibilidades – mas depois não se cumpre. Para mim o que fica sempre por fazer é cumprir a lei: cumprir e fiscalizar. Temos de insistir para passar da teoria à prática. As mudanças não vão ser amanhã, mas temos de pressionar para que as coisas se façam efetivamente. Acho que esta pressão tem de ser feita com diálogo. De outra forma não vamos lá. Temos de ter, em alguns momentos, posturas mais ou menos agressivas, mas com diálogo e educação.     

 

07 – Como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?

CO – Só posso falar da minha experiência pessoal… Não tenho nada aquele pensamento de ‘ah somos uma porcaria e lá fora é que é’.

Mas é preciso ser dito que basta atravessarmos a fronteira e irmos a Espanha e as mudanças que vemos logo à primeira vista – pessoas com deficiência a circular na rua e acessibilidade na rua – são abismais. É um dos países para o qual mais viajo, mesmo para aldeias pequenas, e há coisas que são, à partida, garantidas. Por conversa com pessoas nos locais, o que me apercebo é que isto acontece porque a fiscalização lá é muito mais apertada. Portanto, batemos na mesma tecla: Portugal até tem leis, mas não são cumpridas e não há ninguém que vá fiscalizar. Desafio as pessoas a andarem na rua: lá vejo muitas pessoas com deficiência, enquanto aqui não. Pelo menos no Porto passo dias e dias sem ver uma pessoa com deficiência na rua porque falta acessibilidade.  

Outro exemplo que posso dar é Bruxelas. Deixou a desejar. Fiz um percurso pedonal para ir almoçar com uma amiga e foi péssimo. Tinha sido avisada para isso.

Sei que, por exemplo, Berlim – por amigos com deficiência que foram lá – é das cidades mais acessíveis. E sei – porque trabalhei com uma empresa do Reino Unido – que em muitas coisas eles estão anos à nossa frente. Tive oportunidade de questionar sobre as casas de banho adaptadas – uma coisa que mais falha no nosso país – e disseram-me que isso lá é um não assunto. Mesmo estabelecimentos mais pequenos têm de ter casa de banho onde entre uma cadeira de rodas e quem não tem passa por uma fiscalização e tem de reformular o espaço.

Em muitos parâmetros estamos a anos-luz de outros países europeus, mas em outros estamos mais à frente. Não consigo posicionar Portugal num nível. E apenas posso falar de experiências pessoais. Se tivesse de posicionar Portugal em relação à Espanha, punha Portugal no nível mais baixo, sem dúvida.

 

08 – Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?

CO – Sou muito otimista, mas também sou realista. Acho que não vou ver as mudanças práticas no dia a dia, nem o dia em que possa sair de casa sozinha para a rua sem me preocupar com obstáculos, em que possa ir a uma entrevista de emprego e não tenha de me preocupar com 1.500 coisas, onde não sofra discriminação diariamente quer seja pelas atitudes, olhares, formas como falam, pela forma como me excluem dos sítios ou como constantemente temos de nos impor em todas as áreas da nossa vida… Acho que não vou estar cá para ver. Mas acho que as mudanças estão a acontecer. A uma velocidade muito lenta? Sim. Mais rápida do que há uns anos atrás? Também.

Acho que os próximos anos vão continuar a ser anos de luta e de reivindicação para quem a quer fazer. Eu não acho que as pessoas com deficiência têm de ser todas ativistas… Podem querer, simplesmente, existir, como outras pessoas, e não têm e estar no ativismo e na linha da frente se não quiserem. Mas juntos somos poucos. Quantos mais se juntarem melhor.

Acho que vão ser anos de luta e, na minha luta pessoal, vão continuar a ser anos de conversa e de educação porque eu acho que só assim é que vamos conseguir mudar alguma coisa. Só conversando, só explicando, só informando, só educando… Quer seja as crianças, quer seja os políticos, as empresas, a sociedade em si. Enquanto a deficiência e as pessoas com deficiência forem uma temática desconfortável e incomoda para a sociedade, a sociedade vai optar por não olhar para ela. Temos de tirar este incómodo, este peso, este fardo, de cima da temática da deficiência e temos de aproximar pessoas. A sociedade também tem de entender que não tem de falar por nós, mas tem de nos passar o microfone também. Não adianta alguns poderem falar com microfone e nós, a falar sem microfone, temos de estar aos berros.

Acho que os próximos 10 anos vão continuar a ser anos de luta e de conversa, de diálogo e de informação.

 

09 – Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?

CO – Se pudessem ser como este último ano estava ótimo.

Enquanto pessoa com deficiência que se posicionou de uma forma ativista, acho que os meus próximos 10 anos vão ter este sentido: luta, algum cansaço, mas também conquistas. Por muito que não esteja num Parlamento, nem a fazer leis, nem em todas as manifestações, eu vejo diariamente no meu trabalho, quer seja nas redes sociais, quer com as pessoas, mudanças efetivas a acontecerem em mentalidades – para mim as mentalidades são os grandes entraves a que haja uma verdadeira inclusão da pessoa com deficiência – e mudanças efetivas práticas na acessibilidade e na integração das pessoas com deficiência.

Como vejo isso a acontecer, nem que seja um grão de arroz em um arrozal, sinto que as coisas estão em movimento. Claro que temos de acelerar o passo…

Os próximos 10 anos da minha vida, acho que me vou manter, se me permitirem, nesta luta, no diálogo e nesta criação de um sentimento de responsabilidade nas pessoas. Vocês que me ouviram têm a responsabilidade de serem melhores, mais inclusivos… Não na perspetiva de nos fazerem um favor, mas de garantirem os nossos direitos.     

 

10 – Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?

CO – Deixo-vos uma mensagem de força para continuarem o vosso trabalho. Sei que é um trabalho de luta e de posicionamento e isso é muito importante. Agradeço-vos porque a minha história com vocês sempre foi interessante: como vocês se deram a conhecer a mim, como eu vos conheci, a oportunidade de ter trabalhado com vocês, de ter participado no concurso [de fotografia A inclusão na diversidade] que dá tanta visibilidade às pessoas com deficiência.

Continuem. O nosso percurso de atingir pessoas, mudar mentalidades, levar informação às pessoas às vezes pode ser ingrato. Nem sempre as pessoas estão imbuídas na nossa causa, mas acho que a piada também está aí: em podermos rodar algumas chaves na cabeça de algumas pessoas, pessoas mais preconceituosas, mais capacitistas ou que não estão sequer alerta para estas questões.

Vocês deixam bastantes sementes nas cabeças das pessoas que vos leem. Continuem e no que precisarem da minha parte, só não colaboro se não puder. Parabéns por este projeto e por todos os projetos ligados a este. Obrigada.

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