Ana Catarina Correia: “A geração atual de ativistas em Portugal, apesar de reduzida e ainda pouco expressiva, tem a responsabilidade e missão de preparar as gerações futuras para o ativismo”
- Escrito por Sofia Pires
- Publicado em Portugal
E veio mesmo a calhar, a entrevista que assume a responsabilidade de representar dois meses - julho e agosto – mas a protagonista aguenta bem este desafio. Ana Catarina Correia que se apresenta como socióloga, ativista e atleta está neste momento a dar a cara pela vertente desportiva. Depois de vencer a britânica líder do ranking mundial, Claire Taggart nas meias-finais de individuais BC2 de Boccia, vai disputar a final no sábado, 12 de agosto, contra a neerlandesa Chantal Van Engelen nos Campeonatos Paralímpicos Europeus.
01 – Quem é Ana Catarina Correia: como se vê, como as pessoas a veem?
Ana Catarina Correia (ACC) - Uma forma rápida de me descrever é a seguinte: socióloga, ativista e atleta. Quem sou eu? Uma eterna insatisfeita com um otimismo que me persegue na forma como vejo a vida e tudo aquilo que me rodeia. Considero-me uma pessoa crítica e sempre disponível para aprender. Tento dar o melhor de mim em tudo o que faço e a cada momento (foi das melhores coisas que o desporto me ensinou) e cumprir os objetivos a que me proponho. Quem convive e trabalha comigo diariamente considera-me bastante determinada. Deste os 16/17 anos comecei a tomar consciência de que tinha que ser ativista na área da deficiência e criar um sentido de identidade coletiva na comunidade. E foi por aqui que começou o meu interesse. Claro que ser uma mulher com uma deficiência desde nascença também determinou muita coisa neste percurso, mas sempre na procura de um espírito coletivo. Então a minha relação com esta área da deficiência acaba por ser nos moldes do ativismo e de um olhar sociológico em simultâneo.
02 - Como foram os últimos 10 anos na sua vida?
ACC - Atualmente tenho 32 anos. Posso dizer que os últimos 10 anos foram de grandes aprendizagens. Sempre ligada ao ativismo, ao desporto e à sociologia. Grande parte deste tempo também me dediquei a procurar a minha autonomia. Ainda estou nesse processo, mas acho que já conquistei muita coisa.
03 - Quais foram os momentos mais marcantes?
ACC - Em 2015 terminei o meu mestrado em sociologia com uma tese sobre as questões do corpo na deficiência, em particular na paralisia cerebral. O término desta tese foi muito marcante, assim como a atribuição do prémio Maria Cândida da Cunha para as ciências sociais em 2016. Em 2014/15 também frequentei, no Porto, a Academia Ubuntu. Foi muito marcante por tudo o que aprendi sobre liderança servidora e pelas pessoas que conheci. Em 2016 foi também o ano em que comecei a frequentar o ginásio da Universidade do Porto e tive um ganho de autonomia e desportivo gigantesco. Em paralelo foi também o ano onde fui convocada a primeira vez para integrar os estágios da seleção nacional de Boccia. Em 2017/18 consegui a minha primeira oportunidade profissional sob alçada da FAPPC onde, entre outras coisas, elaborei um relatório sobre as questões da deficiência no ensino superior. Trabalhei também no âmbito de um projeto Erasmus. Em 2019 relacionei-me formalmente com associação CVI - Centro de Vida Independente onde assumi funções de dirigente associativa. Todo este percurso foi pautado por ativismo e uma tentativa de perpetuação da filosofia de vida independente na medida em que a conheço.
04 - Como avalia os últimos 10 anos na vida das pessoas com deficiência?
ACC - Pensando em termos gerais, acho que foi de alguns avanços e retrocessos. Claramente que a implementação do MAVI [Modelo de Apoio à Vida Independente], em 2019, foi um ponto de viragem com ganhos para as pessoas com deficiência. Mas que continua a chegar a apenas algumas e com muitas fragilidades. Outro ponto de viragem foi a implementação da PSI. Do ponto de vista político creio que foram duas grandes mudanças em Portugal. Isto veio acompanhado do surgimento de um ativismo, ainda muito tímido, das pessoas com deficiência em Portugal a partir de 2012 (e que é uma das pedras basilares do CVI). Tirando este facto, as mudanças em termos estruturais não foram muitas desde 2008/2009.
05 - Em que áreas foi mais positiva a evolução?
ACC - Acho que a evolução mais positiva foi uma ideia mais generalizada das questões da deficiência enquanto aspetos de cidadania e não como uma mera temática onde tudo o que se faz é numa lógica assistencialista e caritativa. Outro aspeto positivo é um envolvimento cada vez maior das próprias pessoas com deficiência nestes aspetos. Mas claro que ainda há um longo caminho a percorrer e estas mudanças são muito lentas.
06 - O que ficou por fazer?
ACC - Definir a deficiência como uma das prioridades da agenda política. Mas fazer este caminho com o envolvimento direto das mesmas. Acho que é a grande lacuna. No dia em que atenuarmos esta fraqueza, conseguiremos mudanças muito positivas e desejáveis.
07 - A comparação inevitável: como Portugal se posiciona em relação aos restantes países europeus?
ACC - Como um país de desenvolvimento intermédio, digamos assim... Com algumas conquistas, é certo, mas com um caminho longo e árduo pela frente. Não podemos esquecer, nunca, o nosso modelo de estado providência. É comum, em países do Sul da Europa, um estado familista. Um Estado que delega as suas responsabilidades nas famílias e comunidades, principalmente na área dos cuidados. Já os países nórdicos, por exemplo, têm um estado providência forte que assenta em serviços de qualidade e direitos de cidadania. O posicionamento português é precisamente este: de desenvolvimento intermédio, com grandes fragilidades no Estado Providência e com uma demissão absoluta do Estado face às famílias... E um país onde imperam taxas de pobreza significativas e de inúmeras desigualdades em vários domínios da vida.
08 - Como acha que vão ser os próximos 10 anos para as pessoas com deficiência?
ACC - Honestamente, acho que serão anos de grandes lutas. Teremos que continuar a alertar e na retaguarda para que muitos direitos nos sejam garantidos (e protegidos). A geração atual de ativistas em Portugal, apesar de reduzida e ainda pouco expressiva, tem a responsabilidade e missão de preparar as gerações futuras para o ativismo, a resiliência e o envolvimento político nestes assuntos.
09 - Como deseja que sejam os próximos 10 anos na sua vida?
ACC - Sendo muito sincera, tenho como objetivo claro participar nuns Jogos Paralímpicos (como atleta de alto rendimento de Boccia este é um objetivo passível de ser alcançado). A par disto, quero continuar ligada ao ativismo e às dinâmicas associativas. Penso também, até lá, constituir família. Desejo que sejam anos de muitas conquistas em Portugal em matéria de direitos humanos!
10 - Que mensagem deixa à Plural&Singular pelos 10 anos de existência?
ACC - Em primeiro lugar, parabéns pela vossa primeira década de existência. Há muito que as pessoas com deficiência e Portugal merecia uma revista assim. Não tenham dúvidas: é realmente um trabalho extraordinário e que em muito contribui para as conquistas de direitos humanos das pessoas com deficiência.
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